A amiga tem sempre uma opinião muito bem formada acerca dos assuntos colocados em pauta. Especialmente se eles envolvem alguma situação relativa ao comportamento humano.
É que ela sempre tem um exemplo para ilustrar seu ponto de vista. Porque com ela foi assim. Porque com o filho da vizinha foi assado. Então, é claro que seu argumento não pode estar equivocado.
Veja bem, a vida dele não foi fácil, se alimentava de luz, ficou por um triz de não padecer no brejo da cruz e, contra o prognóstico de passar a vida dependendo do SUS, ele escolheu o caminho do bem, daqueles que trabalham duro e, ao final, conquistam seu lugar ao sol e ao plano de saúde. Está vendo! É um vencedor e, por isso, merecedor do bom e do melhor.
Essa amiga é uma pessoa bacana, legal, do bem e quer o bem. Mas, às vezes, não percebe que seu discurso baseado apenas em relato de casos, tidos equivocadamente como evidências, promove um mal. Aquele da intolerância dos que generalizam a situação alheia com base apenas em suas próprias experiências.
É que a amiga se esquece que elas, na verdade, demonstram como somos ímpares. Muito diversos de nossos pares. E se não somos iguais mesmo, menos o são os contextos de nossas escolhas.
Em outras palavras, para que a amiga não tenha dúvidas do que se pretende colocar é bom deixar claro: ela tem razão em nos responsabilizar por nossas escolhas, mas esquece que elas são baseadas em contextos de vida peculiares e, às vezes, diametralmente diferentes daqueles que ela percorreu.
E isso, por si só, já seria suficiente para lhe demonstrar que o seu relato pessoal ou a história de sucesso do vizinho que comia luz e venceu na vida não podem ser tomados como provas irrefutáveis de suas posições quanto ao comportamento alheio, especialmente se ele foge àquele que ela tinha certeza ser o adequado dentro de sua percepção.
Daí porque a importância da reflexão: o exemplo de um está longe de ser prova de suposta regra mas, muitas vezes, pura exceção, dentro de um contexto em que, para muitos, só traz exclusão, discriminação, segregação.
Daí porque sair por aí querendo única e exclusivamente a morte do ladrão, a condenação da moça que foi violentada no pancadão, ou a prisão da criança que, desde cedo, aprendeu a ser o vilão, não vai trazer a tão sonhada solução: aquela em que a amiga do bem e o vizinho esfolado mas esforçado não precisarão mais se proteger em suas privadas prisões, atrás de altos muros e portões.
Infelizmente, para se tentar chegar a algum lugar de paz e segurança e, sobretudo, justiça e igualdade (a substancial e não apenas a bonitinha e romântica formal), a amiga vai ter que deixar a preguiça que dá de efetivamente refletir.
Vai ter que largar o calor e o aconchego do País das Maravilhas para arregaçar as mangas, tomar fôlego e coragem para deixar suas certezas absolutas de lado e partir para o desconhecido, estudando, investigando e compreendendo o lado sombrio de Gothan City e seus mal nascidos.
Quem sabe assim, a amiga e o vizinho conseguem alargar as estreitas percepções acerca do comportamento alheio daqueles que, muitas vezes, vivem em guerra desde muito cedo.
Não. Não está fácil para ninguém, mas achar que a própria dificuldade e a percepção sobre ela é a mesma que é para outrem não vai nos levar muito além.
Reflitamos. Não generalizemos. Com esperança, a mente ampliaremos. E o tal do mundo melhor, alcançaremos. Amém.