Falar sobre limitação na liberdade de expressão é sempre um trabalho árduo, campo inóspito e repleto de armadilhas. Portanto, é preciso muito cuidado, mas, nem por isso, deve-se deixar essa pauta de lado.
Como nossa história já viveu anos de censura e repressão à liberdade de expressão, qualquer movimento em prol de sua limitação, após o árduo trabalho de seu resgate, parece heresia.
Ocorre que, justamente em razão da evolução da humanidade se dar em movimentos não lineares, é preciso muita cautela para que a tão aclamada, necessária e fundamental liberdade de expressão não sucumba justamente por ingerir excessivamente o remédio a que se vale contra a inaceitável censura.
Iniciemos essa conversa com a seguinte premissa: nenhum direito é absoluto. Nenhum. Inclusive a vida. Basta lembrar que a legítima defesa é a autorização legal da autotutela contra uma agressão injusta, ainda que seu resultado seja a morte do agressor.
Pois, se até a vida, nosso bem maior, aquilo que deveria ser sempre um fim em si mesmo, encontra seu limite, por que a liberdade de expressão também não encontraria e permaneceria sendo encarada como absoluta, ilimitada?
Pois bem. Quando estamos na privacidade de nosso lar ou entre amigos no bar, nossa liberdade de expressão tem seu grau próprio. Afinal, nada mais humano e, quiçá, necessário, que querer compartilhar com entes próximos nossas percepções, nossas aventuras, nossas loucuras, nossas amarguras. Daí vai de cada um a limitação da exteriorização, sabendo que, ao se exceder, perder um amigo é o máximo que pode acontecer.
Coisa muito diferente é a exteriorização pública de determinados pensamentos. Pública não no sentido de exteriorizar o que sai da mente, mas exterioriza-la ilimitadamente para toda uma plateia de gente. Especialmente quando quem exterioriza é pessoa pública, que carrega junto a si uma massa de outras pessoas que podem encontrar em seu discurso a legitimação para a exteriorização do mesmo pensamento, seja ele qual for.
Seja ele qual for. Esse é o problema. Ao se manter a liberdade de expressão irrestrita, permite-se que se incita tudo, absolutamente tudo. Inclusive o ódio, o preconceito, o racismo, a intolerância e a violência.
Se você compartilha da percepção de que não há problema nenhum em se disseminar e estimular esse tipo de pensamento, obviamente a liberdade de expressão lhe deve ser irrestrita.
Ocorre que a minha percepção do mundo e da sociedade em que eu gostaria de viver tem como pressuposto básico que o limite para qualquer direito esbarra nos tais direitos humanos. E é bom lembrar que não existe uma instituição chamada direitos humanos. É bom recordar (ou aprender) que direitos humanos é o conjunto de direitos fundamentais para a sua existência digna, ou seja, é o seu direito à vida, à sua integridade física e mental, à sua liberdade, à sua saúde, a não perder a condição humana – leia–se, a não ser tratado como se bicho fosse, apesar de ter muito bicho por aí que é melhor tratado do que gente.
Por isso, não tenho receio em falar sobre a limitação à liberdade de expressão, dado que a premissa é essa: assim como todo direito, esse deve limitado (única e exclusivamente) por aquele rol ali de cima, dos direitos humanos.
Com base nessa premissa não se corre o risco da limitação à liberdade de expressão virar censura, dado que a censura é, justamente, impedida pelo próprio rol de direitos humanos (um deles, a liberdade).
Passada a necessidade inicial, pós-ditadura, de se mantê-la como direito absoluto, inclusive objeto de imunidade parlamentar, é chegada a hora de se repensar a defesa da ilimitada liberdade de expressão, na medida em que nossa democracia ainda adolescente e, bem por isso, em desenvolvimento e vulnerável, corre o risco de presenciar o que já se está sendo vivenciado: a permissão para que pessoas públicas possam falar e insitar o ódio, a violência, o preconceito.
Essas pessoas, por si só, não me preocupariam. Ocorre – e muita, muita gente lhe dá audiência porque não se dá conta disso – que junto delas são movidas uma massa de gente que precisa, justamente, de um legitimador do ódio, da violência e do preconceito para que a liberdade de suas expressões virem reais ações. Esse é o grande perigo que o amigo, ali aplaudindo quem se diz o salvador do “inimigo”, não consegue enxergar além de seu próprio umbigo.
E a quem acha que é tudo uma piada, que a fala violenta e truculenta dessas figuras é engraçada, pare, pense e coloque a mente para fora dessa caixa de fósforo que a aprisiona para dar uma olhada no reflexo real desse tipo de discurso: atropelamentos em massa, atiradores de janela, ateadores de fogo em criancinhas, espancadores de irmãos abraçados por achar que são namorados, e outras tantas tantas violências que, por não darem audiência, sequer chegam aos seus olhos, quiçá à sua consciência.
E é a ela que apelo: quer bater palmas para o ódio dançar? Cuidado que pode ser você mesmo a próxima mira de sua ira. E ódio, quando deixa de ser só palavra e sua expressão para virar ação não tem piedade. É irracional. Age na crueldade da violência com uma única missão: a destruição.
Portanto, assim como todo e qualquer direito, a liberdade de expressão não deve ser absoluta. E se quisermos que ela e outras tantas liberdades, de sermos quem quisermos, de nos auto-determinarmos, de não sermos alvejados e atropelados e queimados e espancados e massacrados justamente porque decidimos SER, sejam preservadas, é melhor falarmos sobre isso. Em prol da necessidade urgente de se impedir que discursos de ódio, preconceito, racismo e violência continuem a ser disseminados e, pior, apoiados, inclusive por amigos queridos que estão aqui, bem dos nossos lados.
Imagem: Guernica – Pablo Picasso