Não, não somos. Isso já acabou faz tempo. Imagina. Que bobagem.
Não, meu amigo. Infelizmente, sim. Ainda somos racistas. Ainda está dentro de nós. De alguns é bem claro, nítido e se mostra na primeira reunião semanal no escritório, depois que a nova funcionária afro-descendente foi contratada. E lá vem a piadinha sobre como ela trabalhará bem porque está acostumada com o tronco, ou da bobagem que ainda fará, porque, sabe como é, se não faz na entrada, fará na saída.
Para outros o racismo vive mais profundo ali escondido no fundo. Não queremos que ele apareça. Entendemos que ele não faz o menor sentido e por isso o enxotamos para as gavetas mais profundas da mente. A tentativa é louvável, claro. Mas não nos enganemos, sem qualquer aviso seu fantasma deixará o esconderijo e quando se viu, buuuu. Deu-nos o susto, fazendo-nos trocar de calçada ao vermos andando, em nossa direção, um menino com o tom da pele escuro como a noite pairando sobre aquela rua quase deserta.
E lá se vai a tentativa de nos enganarmos achando que somos imunes ao preconceito que nos é cuspido pelo racismo.
Por isso talvez uma boa forma de efetivamente combatê-lo seja, inicialmente, parar de negá-lo.
O próximo passo, como sugestão, seria refletir sobre a razão (ou a absoluta falta dela) pela qual o tom da pele de outrem pode fazer alguma diferença em qualquer que seja a situação. Não, meu amigo, não faz.
Mas um dia, lá atrás, fazia. Quer dizer, quiseram que fizesse, porque assim era fácil, dentre tantas outras razões, diferenciar quem deveria servir e quem seria servido. Mas se ninguém duvida que a escravidão acabou (em tese) faz tempo, é melhor não duvidar que ela ainda vive entre nós, ainda que brandamente, em uma versão zumbi. Ora morta, para quem quer enxotá-la, aprendendo a apagar seus fantasmas e perceber genuinamente que tom de pele não define gente. Ora bem viva, quando o colega faz a piadinha ali no escritório sobre a funcionária negrinha.
Não colega, não é negrinha. É negra, é afro, é linda. É da cor que todo mundo quer ter quando se estica ali no sol, é da cor de uma pele sensacional, cuja idade e sua passagem pelo tempo demoram muito mais a dar sinal. Mas é uma pele injustiçada por uma maldita época na história em que quem a tinha era visto e tratado e trocado e comprado como animal. Numa época em que os animais não eram tratados como os pets de hoje, é bom que se lembre. Afinal, atualmente ninguém duvida que tem gente que está longe de ser bem tratada como o é por aí tanto au-au.
E como essa época não é tão distante assim. Ainda temos, sim, seus resquícios pairando na mente que pode querer enganar, mas não mente e, mais cedo ou mais tarde, revelam-se. Para uns, escancaradamente, na sala de reunião, para outros, mais sutilmente, ao trocar de calçada, na escuridão.
E, então, como resolver a questão? Olha, amigo, tempos pela frente um bom chão até que a cor da pele do outro seja apenas uma característica física. Mas acredito genuinamente que um bom atalho para chegarmos lá é sempre pegando carona na diversidade.
E dá para começar a trabalhá-la com nossos pequenos de tenra idade mostrando que o mundo dos mocinhos não é feito só de loirinhos de olhos azuis e branquinhos.
Que as pessoas têm peles de várias cores e cabelos de muitas texturas mas que lá dentro do peito o coração pulsa sangue, que é sempre vermelho. Para todos. Lá dentro, é tudo igual. É gente. É carne e osso. Ponto final.
Crescendo assim, entendendo que realmente somos misturados e não cada um com sua cor em seu quadrado, vem a compreensão de que ser diferente (independente do tipo ou formato da diferença) é tão típico e usual e comum quando se trata de gente.
E aí um dia nossos pequenos crescerão e virarão foliões (para a alegria da mamãe que ama samba e tristeza do papai roqueiro xiita), e olharão ali no bloco a família ao lado fantasiada e não enxergarão no filho afro-descendente um macaquinho (no tom pejorativo trazido pelo racismo), mas tão somente Abu, o melhor amigo de Aladim.
Que um dia seja assim.
(Imagem: ceert.org.br)